Crítica | Pulp Fiction – Tempos de Violência (Pulp Fiction)

Nota
5

Sabe aquele tipo de filme que consagra totalmente a carreira de seu diretor? Desde o princípio, tivemos os célebres exemplos de Tubarão” (1975) e Taxi Driver” (1976), obras que entraram para a história do cinema, impulsionaram a veia artística de Steven Spielberg e Martin Scorsese, respectivamente, e revolucionaram seus respectivos gêneros. Ciente dessa questão, Quentin Tarantino transforma o longa “Pulp Fiction” (1994) no seu maior exemplar, construindo um dos maiores clássicos da década de 90.

Através de uma fórmula já abordada na sua obra Cães de Aluguel” (1992), o cineasta traz a violência nua e crua, sem poupar o espectador. Afinal, como fazer uma abordagem realista sem destrinchar a raiz do problema e a brutalidade? Aqui, vemos diversos criminosos que têm suas vidas cruzadas, ao mesmo tempo que questionam suas próprias vidas e o sentido da moralidade. Já no primeiro momento, podemos perceber esse teor agressivo, justamente com o surgimento dos assassinos Jules Winnfield e Vincent Vega, dois sujeitos capazes de tudo.

Embora Tarantino corra o risco de tornar tudo artificial e limitar sua narrativa a uma violência “gratuita”, observamos que os dois criminosos tem suas próprias características e seus comportamentos complexos. Em muitos trechos, a impressão que fica, por exemplo, é que Jules luta contra si mesmo, numa tentativa frustrada de mudar seu próprio caminho. Aqui, vemos a desconstrução do estereótipo do mercenário cruel e sádico e captamos uma certa ambiguidade moral, como se o personagem estivesse questionando a si próprio os motivos que o levam à barbárie. Nitidamente, o maior acerto da narrativa, sem sombra de dúvidas.

Quanto mais destrinchamos as linhas temporais do filme, mais presos à narrativa ficamos. Nesse contexto, observamos o ciclo entre passado e presente, como a história de Butch e o Capitão Koons. Aqui, acompanhamos a origem conturbada de Butch e traçamos uma “justificativa” para seus atos – não que isso anule a responsabilidade do personagem, tampouco o romantize. A questão é, antes de tudo, entender as causas e as consequências dos atos dos tipos representados, através de diálogos ácidos e notáveis flashbacks. Afinal, a construção das figuras é tão cuidadosa que fica difícil demonizar ou humanizar totalmente os personagens.

Nesse quesito, repare que, mesmo num meio permeado de sangue, armas e violência extrema, todas ações encontram uma subversão e uma moral questionadora. Mia Wallace, a sensual prostituta esposa do chefão Marcius Wallace e amante de Vincent, provoca sentimentos diversos em quem assiste. Por um lado, ficamos deslumbrados com a sua ousadia e seu estilo intimidador; por outro, sentimos que toda essa personalidade é um escudo de imposição – basta observar que, quando é citada pelos outros personagens, não tem seus atributos físicos enaltecidos, mas seu comportamento e o efeito que causa, sendo sempre objetificada pela personalidade.

O relacionamento de Mia com Vincent exala sensualidade e poder. Mesmo que seja um caso proibido, é possível perceber a tensão sexual que salta aos olhos do espectador e o machismo com o qual Vincent trata a amante, mostrando que cada encontro entre os dois toma proporções inexplicáveis. Em todo momento, o casal não mede seus esforços para que suas armações e seus crimes tenham êxito e completam suas lacunas, principalmente no trecho em que Mia sofre uma overdose e o parceiro parece sentir culpa por essa situação. Afinal, ela poderia estar em outra situação se não fosse a influência dele.

Paralelamente a tudo isso, há uma história que funciona como uma espécie de “ponte” entre as outras. No prólogo e na sequência final, vemos a dupla de assaltantes Pumpkin e Honey, dois namorados que decidem aterrorizar uma lanchonete no início da manhã. Embora os dois nada tenham a ver diretamente com os outros personagens, é interessante esse ciclo que ambos abrem e fecham, como se fossem responsáveis por tudo. Claramente inspirados no casal de criminosos de Bonnie e Clyde, o par age de maneira irresponsável, sagaz e sem papas na língua. A marca tarantinesca do filme, com certeza.

Nos quesitos técnicos, a caracterização dos personagens chama a atenção, principalmente o estilo sexualizado de Mia e o intimidador de Jules e Vincent. Aqui, mesmo que fujam de estigmas, cada vestimenta corresponde a um pico da personalidade de seus usuários, contribuindo para a aproximação entre ficção e realidade. Da mesma forma que o figurino é digno de reconhecimento, a trilha sonora cresce cada vez mais a atmosfera pesada da narrativa e podemos perceber a obscuridade das ações só pelo instrumental carregado, como se fosse o porta-voz das cenas. Grandiosos trabalhos, sem dúvidas.

A direção, por sua vez, é um tesouro. Tarantino foca excessivamente nas expressões das figuras que compõem sua obra, tornando os mínimos em máximos detalhes. A linguagem corporal dos atores, por exemplo, é extremamente valorizada aqui, através de enquadramentos que facilitam a conexão com o público. O cineasta usa e abusa de simbologias que fortalecem seu objetivo e, essencialmente, o desenvolvimento da narrativa, por meio de um cenário obscuro, tenso e desafiador. O fruto de um gigantesco trabalho técnico.

Sobre as atuações, é válido pontuar a harmonia incrível entre o elenco. Intérpretes de Mia e Vincent, e exalando química avassaladora, Uma Thurman – indicada ao Oscar de coadjuvante – e John Travolta roubam a cena e defendem com maestria seus personagens, elevando o nível de ambos a um outro patamar. Não atrás de seus colegas de cena, Samuel L. Jackson – também nomeado ao Oscar – se destaca brilhantemente com seu Jules e o transforma na melhor atuação do filme, sendo valorizado como merece. Um trio de ouro.

Além deles, as presenças de Tim Roth (Pumpkin), Amanda Plummer (Honey), Bruce Willis (Butch) e Christopher Walken (Koons) também merecem reconhecimento. Enquanto vemos uma explosiva dupla de Tim e Plummer, observamos um comportamento mais retraído em Bruce e Walken, como uma bomba prestes a explodir. São tipos complexos, apesar dos conceitos simples, e que prendem a atenção de quem assiste, mostrando que a obra tem espaço para todos os envolvidos.

Por fim, Pulp Fiction finaliza com a mesma qualidade impecável de seu início, consagrando positivamente a notória carreira recheada de brutalidade do Tarantino. Uma ótima oportunidade para se deliciar com as gigantes performances e uma flexibilidade irretocável do roteiro. Obra-prima demais.

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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