Crítica | Onde Está Você, João Gilberto? (Where Are You, João Gilberto?)

Nota
4

Há alguns anos, o jornalista alemão Marc Fischer viajou até o Rio de Janeiro para encontrar o cantor e compositor icônico João Gilberto, que deu origem à Bossa Nova na década de 1950 e levou a música popular brasileira para o mundo, mas de quem não mais se teve notícias. Ao lado de uma tradutora carioca, Fischer escreveu o livro Ho-ba-la-lá: À Procura de João Gilberto, no qual se apelidou de “Sherlock” e sua co-autora de “Watson”, por perceber estar participando de uma complicada investigação. O autor se suicidou em abril de 2011 e seu livro foi lançado em dezembro do mesmo ano.

Tendo a obra literária como base, o diretor francês George Gachot resolveu contatar a tradutora Raquel Balassiano, e fazer uma série de entrevistas, reconstruindo os passos de Fischer e descobrindo as histórias por trás da figura mítica de João Gilberto. Por meio de entrevistas, canções e imagens arrebatadoras do Rio de Janeiro surge o documentário Onde Está Você, João Gilberto?, ao mesmo tempo uma discussão com tratamento poético sobre um personagem e um paralelo de duas obsessões por este.

Apesar de ser guiado por depoimentos e narração, a obra de Gachot não assume o formato tradicional do gênero; a câmera, por exemplo, se mantém invisível durante as entrevistas, que, por sua vez, soam menos como sonoras e mais como conversas descontraídas – ainda que tragam à tona memórias e sentimentos de grande importância para a construção da persona em questão, especialmente as falas de Miúcha, João Donato e Marcos Valle. Os anseios do diretor/protagonista são bem captados não somente pelo ótimo texto da narração, mas principalmente pela excelente cinematografia: aqui o Rio de Janeiro é filmado de forma propositalmente fria, nublada ou noturna, e é notável o simbolismo que Gachot extrai de algumas composições aparentemente tão triviais (a exemplo dos planos abertos que realçam as janelas acesas em contraste à escuridão da cidade, como se o contraluz de João Gilberto pudesse aparecer a qualquer momento).

A câmera continua se mostrando inspirada na hora de captar percepções ainda mais específicas, como na contemplativa cena do banheiro, em que o filme vai direto na raiz improvável e inusitada da Bossa Nova. Aliás, como não poderia deixar de ser, a música desempenha também uma importante função narrativa, servindo de transição entre diferentes cenários e ajudando a submergir o público na atmosfera proposta.

É evidente que toda essa investigação oferece muito mais um banho de misticismo e curiosidade do que uma exposição de fatos, até porque boa parte da história recente de João Gilberto (dívidas, interdição, processos judiciais) não é mencionada. No entanto, como nos bons documentários sobre esses mitos, a preocupação maior de Onde Está Você, João Gilberto? está em trabalhar a presença do compositor em cada ambiente visitado, desde a praia de Ipanema até as ruas de Diamantina; é como se houvesse um pedaço dele em cada uma das pessoas enquanto relatam suas lembranças, mesmo aquelas que nunca o conheceram pessoalmente (a aparição do imitador oficial é particularmente evocativa). É bem verdade que essa abordagem passa longe da originalidade, mas sua eficiência se deve a uma montagem precisa, que não interrompe os sentimentos dos entrevistados nem os banaliza com uma duração desnecessária.

Fica claro, portanto, que o sumiço ao qual o filme se refere não é só da pessoa física, mas principalmente do ícone em si – o quanto ele pode se misturar com o espaço e como seu legado pode se fundir à sua melancolia. Ao final, permanece o sentimento de essa obsessão de Marc Fischer ter sido transferida para George Gachot e deste último para o público, cuja expectativa pelo encontro com um João Gilberto que já existiu esbarra na sensação de ele não existir mais.

 

De Recife (PE), Jornalista, leonino típico, cinéfilo doutrinador.

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