Review | Black Mirror [Season 2]

Nota
4

“Ele era muito conectado, e seria perfeito.
Ainda tá em Beta, mas eu recebi um convite.”

Um mundo onde a tecnologia é o grande antagonista, isso é Black Mirror, a série britânica antológica de ficção científica criada por Charlie Brooker, com tramas obscuras e satíricas sobrevoando a sociedade moderna e expondo as consequências imprevistas das novas tecnologias. Depois do sucesso da temporada anterior, a série conseguiu garantir sua renovação para uma nova leva de episódios, que começaram a ser lançados pelo Channel 4 a partir de 11 de fevereiro de 2013, mostrando novas realidades da forma como vivemos agora e de como poderemos estar vivendo daqui a 10 anos ou 10 minutos.

A temporada começa com “Be Right Back”, onde conhecemos um pouco da relação de Ash Martha, uma relação que transcende a vida a acaba perdurando para após a morte de Ash, vitima de um acidente de trânsito, quando Martha descobre estar grávida e resolve entrar para o teste beta de uma nova tecnologia, uma tecnologia capaz de simular a voz e a personalidade de Ash no celular, com base em seu perfil nas redes sociais e outros materiais audiovisuais. O grande crash da trama começa quando a fixação de Martha por Ash aumenta, o que a leva a comprar um corpo sintético para a ser habitada pelo programa e, aos poucos, ela começa a questionar se realmente aquele é o Ash ou só uma projeção frustrante de sua tristeza.

Um trabalho e tanto que caiu no colo de Hayley Atwell, que precisa viver camadas cibernéticas de seu luto, projetando seu amor em um robô simplesmente para fugir de sua depressão, e de Domhnall Gleeson, que se vê incumbido de viver dois personagens tenuemente parecidos e radicalmente diferentes, os dois Ashs são duas personalidades com a mesma aparência, mas, a medida que vamos vendo os dilemas, a medida que vamos vendo as falhas no programa, a medida que vamos vendo a falta de humanidade nesse novo Ash, tudo vai mostrando o quanto a tecnologia pode ser reconfortante num momento como esse e como pode ser perigosa na busca pela superação de um luto.

A série segue com “White Bear”, onde temos um dos mais enigmáticos episódios das duas temporadas. Tudo começa com uma mulher acordando em uma casa, amarrada e com amnésia, e acaba se descobrindo em um mundo completamente insano, um bairro onde a maioria das pessoas na rua carregam um celular e ficam filmando tudo que acontece, e onde pessoas mascaradas carregam espingardas e parecem estar tentando caça-la, o que a coloca em uma dura fuga, junto com uma desconhecida chamada Jem, enquanto tenta entender o que aconteceu, montar as peças de quebra-cabeça de sua memória e descobrir qual o significado do símbolo misterioso que ela parece encontrar estampado pela cidade. Um episódio cheio de mistério, que acaba nos prendendo até a revelação assustadora de seu real significado.

O episódio é inteiro colocado nas costas de Lenora Crichlow, ela quem vive a mulher que acordou nesse mundo caótico, que posteriormente descobrimos se chamar Victoria Skillane, e se transforma na guia dos fatos para nós, telespectadores, é através dela que buscamos entender o que realmente aconteceu nesse mundo, mesmo que seja Jem quem fornece a maioria das informações que Victoria precisa processar. Toda a dinâmica dos Observadores e dos Caçadores parece uma construção de um mundo pós-apocalíptico, mas a história de Victoria é muito mais profunda do que se pode imaginar. Começando com uma trama que parece livremente inspirada em Celular, de Stephen King, o episódio vai muito além, mostrando o verdadeiro poder do roteiro de Charlie Brooker, dando um novo significado para tudo, para o que aconteceu com Victoria, para os Caçadores, para os Observadores, para Jem, para o Urso Branco e para a menina que fica aparecendo nos flashes de memória da mulher.

A temporada chega a seu aparente fim com “The Waldo Moment”, onde vamos além dos limites com um divertido episódio sobre fama e poder. O episódio se guia através de Jamie Salter, um comediante que trabalha controlando um urso azul animado, de personalidade muito mal-educada, chamado Waldo, a grande atração do programa Tonight for One Week Only. Tudo começa com um paralelo entre apresentar o Waldo e falar sobre a renuncia de Jason Gladwell ao cargo de membro do parlamento britânico, que é onde somos apresentados a Gwendolyn Harris, mas a grande colisão dos dois temas começa quando, após a encomenda do piloto de uma série protagonizada pelo Waldo, a equipe de marketing resolve colocar Waldo como um dos candidatos à vaga deixada por Gladwell no Parlamento, uma explosão critica que acabou se tornando ainda mais poderosa após 2015, quando Donald Trump, com um vasto currículo de atuação em comédias, se candidatou a presidência, ganhando a eleição em 2017.

Focado em Daniel Rigby, o episódio mostra a luta interna entre a moral e a necessidade de Salter, Waldo é uma famosa peça de humor negro para a sociedade e o entretenimento, mas entrar para a politica vai completamente contra os valores de Salter. Waldo ganha força quando se torna o maior crítico e força opositora a Liam Monroe, o candidato conservador ao parlamento, e Salter encontra um novo sentido na vida quando começa a se envolver com Harris, a candidata trabalhista ao parlamento, mas uma briga politica pode mudar a vida de muita gente, principalmente quando a piada do “Vote no Waldo” começa a ficar séria, e as pessoas começam a realmente querer escolher o personagem como representante de StentonfordHersham no Parlamento. As camadas subjetivas de Salter ficam claras, o receio do comediante sobre o rumo que sua presença pode ter em meio à eleição entra em grande contraste com a pressão que começa a sentir, ele se torna o reflexo da revolta da população e acaba transformando Waldo em um monstro politico que nem ele consegue controlar, nos levando a refletir sobre o quanto vamos nos deixar ser levados por essas figuras midiáticas e se realmente essa é a melhor forma de melhorar a politica mundial.

A temporada ganha ainda um episódio bônus, “White Christmas”, um episódio especial de natal de uma hora onde somos levados a conhecer as histórias de Matt e Joe, dois homens que estão presos, juntos, em uma cabana remota a cerca de cinco anos. Aos poucos vamos conhecendo o passado de Matt, que já trabalhou no Eye-Link, uma tecnologia de implantes óticos que lhe permitia ajudar homens solteiros a seduzir mulheres, e com os Cookies, um dispositivo que usa cópias artificiais da consciência dos clientes para criar assistentes pessoais obedientes encarregados de gerenciar casas inteligentes, e o de Joe, que teve uma discussão doméstica com sua namorada grávida, Beth, e acabou sendo bloqueado por ela, um ato que alcançou um outro nível por causa da nova tecnologia que, com o bloqueio, faz o bloqueado e o bloqueador ser transformado em borrões de pixel incompreensíveis e inaudíveis um para o outro, uma punição que Beth acaba estendendo para sua filha.

O episódio é protagonizado por Jon Hamm e Rafe Spall, mas a grande surpresa fica a cargo de Oona Chaplin, que tem pouco tempo de tela mas assume um papel marcante, que chama a atenção do público e levanta dilemas muito validos, que consegue botar o dedo fundo nas nossas feridas. O papel de Hamm é imponente, o homem é poderoso como ‘coach’ de sedução, ele consegue ser incisivo nas suas dicas, e mascara bem sua moral escusa, quando ele passa a trabalhar com os Cookies ele atinge outro nível de poder, ele começa a subjugar as mini consciências e parece grandioso com isso, ele nos leva a questionar nossos valores, a rever todas os nossos conceitos de moral. O papel de Spall é diferente, ele parece inocente, parece um puro espectador, ele acaba se tornando uma vítima dos males dessa tecnologia, mas nem todos são vítimas totalmente, há muitos segredos na vida de Joe, e esses segredos mostram o lado perigoso na personalidade das pessoas, aquele perigo que a tecnologia consegue colocar pra fora tão facilmente. Já Chaplin é um vitima verdadeira, a neta de Charlie Chaplin mostra que tem muito da maestria de seu avô correndo no sangue, ela tem pouco tempo de tela mas é suficiente para roubar nossa atenção, ela nos faz confrontar todos os dilemas e preços do progresso, e todos os perigos e dilemas éticos que a tecnologia parece romper.

A segunda temporada de Black Mirror prova que Charlie Brooker tem o ouro nas mãos, ele continua inovando com sua antologia onde temos um elenco diferente, um cenário diferente, até mesmo uma realidade diferente por episódio, sempre abrindo nossos olhos sobre a forma que vivemos agora e a forma que podemos estar vivendo daqui a alguns minutos ou anos. Essa temporada teve ainda mais graça depois que o designer gráfico brasileiro Butcher Billy resolveu criar artes para cada episodio da temporada num crossover com as clássicas capas de HQ, uma arte tão primorosa que despertou até o interesse do criador da série. A temporada vai fundo ao questionar os males que encontramos nas tecnologias que servem para o bem: Be Right Back nos mostra o dano psicológico causado por uma tecnologia que deveria ajudar com o luto; White Bear nos coloca num novo ponto de vista sobre o dilema da justiça, nos levando a questionar até onde uma tecnologia jurídica pode estar sendo justa; The Waldo Moment fala sobre politica, sobre os limites que a tecnologia pode extrapolar e, principalmente, sobre até onde somos manipulados pela mídia na hora de votar; o poderoso White Christmas vai mais fundo que os outros, falando sobre ética, até onde uma cópia de consciência é humana, até onde a tecnologia tira nossa humanidade, até onde é respeitoso torturar uma pessoa quando ela é simplesmente uma copia virtual? Há muito o que refletir sobre os dilemas do futuro, e o Black Mirror de Charlie Brooker gosta de mostrar, de forma crua e divertida, todos esses dilemas.

 

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.

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