Crítica | Pobres Criaturas (Poor Things)

Nota
4.5

A sociedade vive em uma constante cíclica no que tange a discussão a respeito dos costumes e a moral, sendo esses fatores que dependem da eterna subversão de si próprios. Diante do contexto de uma sociedade que se mostra cada vez mais retornando aos trejeitos conservadores e da filosofia da “moral e bons costumes” cabe as Artes continuarem a se manter como pináculos do debate a respeito da desconstrução desses ideais. É dessa forma que Pobres Criaturas (Poor Things, no original em inglês), inpirado na obra homônima de Alasdair Grey, se apresenta nas telas dos cinemas, um verdadeiro festival de inquietação e afronta a uma sociedade dita civilizada e puritana.

Se passando em uma Era Vitoriana com referências steampunk, somos apresentados à questionável criação do excêntrico médico Godwin Baxter (Willem Dafoe), sua proclamada filha adotiva Bella Baxter (Emma Stone). Bella é apresentada na figura de uma adorável e ao mesmo tempo estranha mulher adulta, mas com a mentalidade de uma criança na idade de descobrir o mundo. Esse contraste de corpo e mente, junto ao cenário a la Frankenstein da residência Baxter, leva o jovem pupilo de God – forma recorrente e subliminar a qual Bella chama Dr. Baxter – Max McCandless (Ramy Youssef), a levantar questionamentos a respeito da estranha personagem.

Durante a obra acompanhamos a estranha dicotomia da vida de Bella, uma mulher adulta capaz de entender os conceitos da medicina e figurar em um debate a respeito da ética e moral do período em que vive, mas ao mesmo tempo possui maturidade e conhecimento de mundo no mesmo nível de uma infante. É retratado justamente esse amadurecimento da personagem, em uma jornada de autodescobrimento e o início de sua aventura pelo mundo ao se envolver com o infeliz Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), um advogado interessado única e exclusivamente em seu bel-prazer.

Yorgos Lanthimos (A Favorita, O Lagosta) é conhecido por seus filmes que abordam e criticam a sociedade de forma não convencional, adotando sempre narrativas cruas e que demonstram a natureza humana de forma que a pequenez humana é retratada da forma mais cínica possível. Em Pobres Criaturas não seria diferente, sendo um filme que tem o sexo como um dos seus motores principais, porém, ao contrário do que se pode pensar, não sendo de uma forma de intuito erótico. A narrativa de Lanthimos é construída em cima da crítica aos costumes e moral vitorianos a respeito do comportamento inadequado de tudo o que é sexual, principalmente vindo de uma dama. Tais discussões permeiam a jornada que se segue, sendo levadas a termo em cada novo capítulo através de uma narrativa crítica, sarcástica e cínica, sendo que sua recepção dependerá justamente da mentalidade de quem assiste. Realmente não seria algo apreciado por qualquer pessoa, mas isso já é de praxe na carreira do grego.

A construção da obra ainda tem seus vieses surrealistas na construção do mundo que Bella passa a descobrir nas suas viagens, sendo diferentes das suas contrapartes no nosso mundo, mas ao mesmo tempo encaixando perfeitamente no que se pode considerar o sonho de alguém que está vendo aquilo pela primeira vez. A artificialidade está presente em tudo, como uma tentativa de reproduzir a perfeição que qualquer criança espera do local que vai viajar pela primeira vez, uma espécie de parque temático que os adultos sabem que é falso, mas os pequeninos encaram como sendo a coisa mais real do mundo. Isso se transmite também nos figurinos utilizados por Bella, sendo os mais destoantes de todos em todos os momentos, sendo algo único, belo e que a destaca completamente nesse meio semi-onírico.

A forma como os locais são retratados funcionam de forma interpretativa quase como contrapartes ao pequeno mundo que a protagonista conhecia inicialmente, sua imensidão real nunca é demonstrada para o público. A escolha do jogo de câmeras e contrastes nos esquemas de cores ajudam em toda a formação desse ar absurdamente lindo e que captura o olhar do público desde o início, sendo parte de toda essa construção verdadeiramente absurda.

Nada nessa narrativa, porém, funcionaria sem Emma Stone (La La Land), que no papel principal, mais uma vez em parceria com o diretor e concorrente do Oscar, mostra mais uma vez as razões de ser uma das favoritas para levar a estatueta para casa. Bella Baxter precisava de uma atriz que conseguisse transportar seus trejeitos específicos para as telas de forma que não ficasse “bizarro” (com o perdão da palavra) e Emma faz isso brilhantemente. Conseguindo transitar facilmente entre a ingenuidade de uma mente infantil, os momentos sérios e filosóficos de uma adulta debatendo sobre existencialismo e até demonstrando sexualidade problemática, está mais que claro a razão de ser uma das atrizes mais completas da sua geração.

Os demais personagens que disputam os papeis mais significativos não poderiam ser outros se não o questionável Godwin “God” Baxter de Williem Dafoe (Homem Aranha: Sem Volta para Casa) e o execrável Duncan Wedderburn de Mark Ruffalo (Os Vingadores). De um lado, com Dafoe, temos um cientista movido por sua filosofia e morais questionáveis, que tenta se afastar do sentimentalismo em prol da maior racionalidade possível para seus experimentos contestáveis. Do outro temos alguém capaz de qualquer coisa para conseguir seus próprios objetivos e com orgulho imaculado em desvirtuar tudo que seria puro e depois descartar em busca de sua próxima conquista.

Tais personagens são retratados incrivelmente por ambos, cada um com suas subjetividades e evoluções naturais diante das suas ações. Fica claro, porém, que a escolha de Ruffalo para concorrer a melhor ator coadjuvante se baseia justamente em seu tempo de tela no filme, mas que não faz defeito algum diante da brilhante interpretação que Willem Dafoe também faz. Uma nota positiva deve ser também dada a Ramy Youssef (Wish) por sua interpretação do jovem médico aprendiz e a Jerrod Carmichael (Vizinhos) em seu pouco, porém bem aproveitado, tempo de tela.

Por fim, Pobres Criaturas procura fazer uma crítica justamente ao que seu título apresenta: uma representação de uma sociedade que se esconde por trás de uma moral respeitosa e proibitiva, mas que dentro de quatro paredes se entrega a depravação em diversas formas. A hipocrisia reinante de que os prazeres são desde pecaminosos ou até criminosos, mas que no fundo todos procuram algum local para poder se entregar aos seus vícios sem poderem ser julgados por seus pares. E isso não se trata somente da Era Vitoriana.

 

Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.

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