Crítica | Medida Provisória

Nota
4.5

“Ontem eu era negro, hoje sou melanina acentuada…”

Num Brasil distópico de um futuro próximo, o advogado Antônio luta incansavelmente pela justiça com o povo negro, iniciando um poderoso movimento em busca da reparação social pelo período de escravidão, uma indenização. Aos poucos, guiado por um governo autoritário, esse movimento é distorcido e transformado no projeto Resgate-se, uma iniciativa que presenteia os cidadãos afrodescendentes com uma viagem para a África, para se reconectar com suas raízes, um projeto que só se transforma vorazmente na Medida Provisória 1888 (uma ácida ironia com o ano da abolição da escravatura), que determina que todos os ‘melanina acentuadas’ do Brasil encontrados na rua devem ser capturados e enviados para a África, uma decisão que cria caos, protestos e um movimento de resistência clandestino que inspira a nação.

Baseado na peça Namíbia, não!, escrita por Aldri Anunciação entre 2009 e 2011, o longa propõe um debate sobre a dispersão racial e a importância do respeito. O roteiro, que é adaptado e dirigido por Lázaro Ramos, coloca o publico para refletir sobre o verdadeiro objetivo dessa medida provisória, sobre o racismo velado por trás da proposta de retratação em paralelo com o descarado racismo disfarçado que nos sufoca em meio a tantas cenas cruas e inquietantes. O filme nos apresenta nossos ‘heróis’ em meio a toda essa confusão: Antônio, que se vê aprisionado em seu apartamento com seu primo, Andre, por ser o único lugar seguro para ficar fora do alcance dos policiais; e Capitu, uma grande médica que é a esposa de Antônio, ela acaba sendo separada do marido no momento que a caçada começa, precisando fugir e se esgueirar para não ser presa. Em contraste com o trio protagonista está Isabel, uma mulher branca que trabalha para a nova pasta do governo, o Ministério da Devolução; e Dona Izildinha, a vizinha racista que faz de tudo para incentivar os vizinhos negros a aceitarem ir à África.

Como se não bastasse o enredo poderoso, o longa ainda foi presenteado com um elenco espetacular. No papel de Antônio temos Alfred Enoch, o ator anglo-brasileiro que brilha ferozmente em seu primeiro papel no Brasil, ele nos surpreende com sua fluência, seu domínio de tela e toda a paixão que exala de seu personagem, ele vive um advogado negro no Brasil, um papel que por si só já é um desafio, e com a virada da trama começa a se transformar num mártir da luta afro, usando seus direitos para se defender e resistindo às mais violentas investidas de Isabel. Ao seu lado está Seu Jorge no papel do boêmio Andre, um jornalista de blog que não tem papas na lingua e está pronto para lutar com unhas e dentes pelos seus direitos, ele pode não entender muito do que é certo ou errado, mas diverte o público com sua imparcialidade, sem medo de desafiar as autoridades para fazer a noticia. Taís Araújo, interprete de Capitu, é outro ouro da casa, dando o sangue e a alma no filme dirigido pelo marido, Tais entrega uma mulher poderosa, disposta a lutar sem medo pelos seus direitos, disposta a abrir mão de tudo pela felicidade ao lado de seu marido e seu futuro filho. O antagonismo do longa fica nas mãos de duas das maiores vilãs da dramaturgia brasileira: Adriana Esteves (a eterna Carminha) e Renata Sorrah (a eterna Nazaré), que vivem, respectivamente, Isabel e Izildinha, duas mulheres brancas e extremamente ‘respeitosas’ com os negros, donas das falas que mais incomodam durante o longa, estrategicamente alocadas para refletir experiencias de preconceito velado que muitos já viveram.

Extremamente tocante e cheio de gatilhos sobre o racismo, Medida Provisória é uma obra de arte do cinema nacional moderno, ele reflete de forma ácida toda a paixão e inteligência de Lázaro Ramos, que de forma extremamente inventiva consegue ir além do ‘colocar o dedo na ferida’, praticamente enfiando a mão e depois jogando álcool. Meticulosa, a produção evita o uso de armas e a presença de sangue ou corpos negros sangrando, fugindo do duro padrão que se constrói na mente da população e da realidade brasileira, ele constrói uma distopia que é quase uma realidade e levanta um claro debate politico sem citar nomes, construindo cenas icônicas como o momento em que Berto trocar uma arma por um livro. Com participações extremamente especiais, o longa vai fundo no seu elenco negro, trazendo a cena Emicida, o próprio Aldri Anunciação, Jessica EllenTia MáLuis Miranda, e até de Dona Diva Guimarães, a professora de 77 anos que parou a FLIP 2017 com seu devastador relato de racismo. Apesar de não ser perfeito, Medida Provisória é um filme para chorar, rir, ter raiva, se desesperar, se machucar, se surpreender e aplaudir, ele é um filme que toca no fundo de nossa alma, desperta diversos sentimentos e nos dá um tapa na cara com seu final emocionante.

“Esse país é meu também!”

 

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.

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