Crítica | Django Livre (Django Unchained)

Nota
4

Quando o faroeste embrutecido se encontra com um conto de fadas às avessas. Embora pareça incoerente, tal combinação é a peça-chave do filme “Django Livre” (2012). Aqui, Quentin Tarantino bebe das duas fórmulas para abordar os horrores da escravidão, enquanto conta a trajetória de seu herói Django, um ex-escravo que luta para salvar sua esposa de um sádico escravagista ao lado de um debochado matador de aluguel.

Logo no primeiro momento, Tarantino não poupa o espectador do tom violento. Vemos, aqui, uma fila imensa de negros acorrentados, num mercado humano de pessoas. Tratados como objetos e enclausurados feito animais, aqueles indivíduos e seus sofrimentos mostram o que há de mais podre no sistema racista: a escravidão. Ainda que o trecho seja praticamente silencioso e sem diálogos, ele não foi colocado apenas para “chocar” – mesmo que essa também seja a intenção. Há ali uma ideia de introduzir o público a essa atmosfera mórbida e obscura, sem cair na artificialidade, para tecer uma crítica certeira. É, acima de tudo, a realidade da época, na sua mais absoluta forma e no seu completo estado de putrefação, independentemente do nível de relevância no texto.

Do outro lado da moeda, encontramos o amor entre Django e Brunhilde. Repare que, apesar de submersos na violência a que são submetidos, o casal promove uma ressignificação do “conto de fadas”. Nesse contexto, ao contrário dos clichês que o gênero oferece, não há espaço para a sutileza, nem para romantização na abordagem da dupla. Muito mais do que isso, existe nesse companheirismo de ambos uma resistência a todo tipo de horror da escravatura e uma esperança de libertação. Mesmo separados, estão juntos simbolicamente – um resiste pelo outro, num mar de obstáculos. É a força que os une e esse é o maior trunfo dessa trama recheada de simbologias.

Nesse sentido, os símbolos fazem toda diferença nessa relação. Afinal, Django e sua mulher podem ser interpretados como a personificação do mito germânico de Brunhilde – tem até o mesmo nome da protagonista – e Siegfried, justamente pela semelhança entre as histórias. Enquanto o contexto e as etnias separam uma narrativa da outra, o que os assemelha é exatamente a força do herói à procura de seu grande amor. Muito além disso, a ousadia de Tarantino nesse aspecto chama atenção por transformar Siegfried – erroneamente um símbolo da ideologia nazista – em um homem negro e desconstruir toda essa representação deturpada, enfrentando, mesmo metaforicamente, a antiga construção. É, no seu mais completo modo, a crítica ácida, nua e crua.

Como basicamente em toda filmografia de Tarantino, outras sagas paralelas também recebem o merecido destaque. Independentemente de suas significâncias, estão ali e se deparam com a jornada de Django. É o caso, por exemplo, do sarcástico Schultz, um alemão que mascara seu lado caçador de recompensas com a função de dentista. É interessante, nesse viés, e além de curioso devido à fantasia, observar a parceria repentina entre o matador e o protagonista, apesar de suas posições distintas. Ainda que caia no conto do “branco salvador”, Schultz foge desse estereótipo e sua função não se resume apenas a “salvar o negro”. Eles atuam e agem juntos, em momentos que o próprio debochado homem precisa da ajuda de Django. É um tipo de relação que desvia de qualquer estigma e sua construção preza pela mais completa naturalidade, em todos os sentidos e trechos.

Enquanto Django e Schultz armam várias peripécias contra seus inimigos, somos apresentados a outras figuras. Stephen, um dos escravos da trama, é o grande arquétipo de empregado braço-direito do patrão. Aqui, Tarantino levanta a questão de negros perpetuando preconceitos e mostra que, nesse quesito, o personagem não é racista, embora aja como um. O racismo é algo hierárquico e tem mais a ver com o sentimento de superioridade do que com a própria etnia, apesar da forte ligação entre ambos. Dito isso, Stephen, apesar de alimentar perseguição contra a própria pele e se sentir superior aos outros, é vítima do próprio discurso. Afinal, ele é tão negro quanto os outros e seu temperamento agressivo não minimiza isso, tampouco muda a sua cor e sua imagem diante dos brancos.

Mesmo que Stephen seja um antagonista dentro de sua ótica, o grande vilão da obra é o inescrupuloso Calvin Candie, o sadismo em pessoa. Sua construção, apesar de cercada de estereótipos vilanescos, é uma das maiores do filme, justamente pelo tom carrasco que ele carrega. Calvin não hesita em torturar seus escravos e demonstrar seu cruel comportamento, intimidando qualquer um. Nesse cenário, o roteiro acerta quando o transforma num completo covarde. Embora seja capaz de cometer as piores barbaridades em nome de um ideal absurdamente racista, o fazendeiro é um homem que, frente a um confronto real, recua e transmite vulnerabilidade, como se a pose intimidadora fosse uma simples máscara. E esse “escudo” reflete no visual excêntrico do personagem, sempre tentando assustar o outro.

Quantos aos quesitos técnicos, o roteiro e a direção são muito bem conduzidos, apesar da duração excessiva do filme. Veja que, mesmo que seja um problema, essa excessividade não prejudica a fluidez da história e, no fim de tudo, ela acaba até necessária para que o espectador possa captar os mínimos momentos do filme. Já conhecido pelo seu clássico estilo embrutecido, Tarantino realiza notáveis enquadramentos, principalmente nas expressões dos personagens. Esse foco, em todos os sentidos, é crucial na trama, especialmente por distinguir a função de cada um dentro de um jogo em que todos têm sua devida relevância e a verborragia cede espaço a eletrizantes trechos, frutos de um grandioso e detalhista trabalho.

Com relação às atuações, todo o elenco se mostra em sintonia, principalmente a dupla formada por Jamie Foxx e Christoph Waltz, intérpretes de Django e Schultz. O primeiro surge mais contido em cena, ao passo que o segundo – apesar de criar uma quase releitura de sua atuação brilhante como Hans Landa em “Bastardos Inglórios” (2009), do mesmo diretor – entra com um humor ácido e um temperamento desbocado e faz valer sua segunda vitória no Oscar. A construção de ambas as performances diz muito sobre a cultura da época, em que o negro contém seus sentimentos e o branco pode expor o quanto quiser. Quanto mais Django se “solta”, mais seu intérprete alcança um tom espetacular na história, crescendo em cada situação. A parceria dos dois atores consegue ter mais sucesso, inclusive, do que Foxx com Kerry Washington, que interpreta Brunhilde.

Não atrás de seus colegas de cena, Leonardo DiCaprio e Samuel L. Jackson constroem verdadeiros coadjuvantes em cada ponto de suas performances. Di Caprio surge com um Calvin repulsivo e extremamente cínico, capturando toda camada possível do perfil e as nuances que ele carrega. Calvin é expansivo, inconsequente, articuloso e intensamente lunático e, se caísse nas mãos erradas, teria o risco de uma caricatura desastrosa – o que não acontece essencialmente pela força de seu intérprete. Enquanto isso, Jackson emula otimamente o temperamento conturbado de Stephen e rouba a cena, principalmente em trechos tensos, e se consagra com uma de suas melhores atuações, sem sombra de dúvidas.

Ácido, crítico e especialmente tenso, Django Livre traz um valoroso trabalho de ambientação, além de emular perfeitamente os seus personagens e um final que tira o fôlego de qualquer um. E, em meio à tanta originalidade, ainda sobra espaço para referências a outros clássicos de faroeste, como as obras do lendário Sergio Leone. É, com a absoluta certeza, uma das maiores obras de seu diretor.

 

Apenas um rapaz latino-americano apaixonado por tudo que o mundo da arte - especialmente o cinema - propõe ao seu público.

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