Crítica | A Jaula

Nota
3

“Bem-vindo a bordo […] o único jeito de sair daqui é com a chave, que obviamente está comigo.”

Djalma da Rocha é só mais um ladrão entre tantos outros que atuam pelas ruas de São Paulo, e aquele deveria ser só mais um carro de luxo que ele arromba e rouba, mas algo de diferente aconteceu. Depois que Djalma entre na carro, as portas se trancam, ele não consegue mais sair, ele não consegue abrir as janelas, ele não consegue quebrar os vidros, ele não consegue pedir socorro (ninguém fora do carro escuta), ele não consegue chamar a atenção de ninguém (todos os vidros são polarizados). Dr. Henrique Ferrari é um rico ginecologista de 53 anos, ele não suporta mais a violência que existe em São Paulo, ele já foi vítima de vinte e oito assaltos, tendo seu carro roubado quatro vezes, e é por isso que ele resolveu se vingar: Ele colocou um carro de luxo em meio a uma rua pouco movimentada, uma armadilha para capturar o primeiro ladrão que mordesse sua isca, e agora tudo que acontece dentro do carro é controlado por ele, desde a música até o ar-condicionado, para garantir que ele será o mestre de um verdadeiro jogo psicológico.

Sendo concebido como o remake brasileiro do argentino 4×4, o primeiro longa de ficção dirigido por João Wainer é um debate moral para seus expectadores. Djalma é aprisionado num carro a prova de balas, que se torna o maior pesadelo para o ladrão, onde somos levados a acompanhar o poder do rancor e da sede de vingança de uma pessoa que foi exaustivamente vitimizada pela violência brasileira, nos colocando em um enredo que lembra uma pegada Jogos Mortais, a produção foge completamente do padrão de documentários que Wainer é habituado e se mostra como um inesperado thriller psicológico que não deixa o público desgrudar da tela. Usando mão da simplicidade, a produção é quase que completamente desenvolvida usando apenas um cenário e três atores, o que nos ajuda a conhecer mais a fundo a prisão de Djalma, enxergar a rotina naquela rua e conhecer de forma mais clara o homem por trás da ligação que Djalma recebe, nos fazendo criar uma concepção sobre o Dr. Ferrari antes de ele finalmente aparecer em tela.

Protagonizando maior parte da trama, Chay Suede entrega muito da personalidade sofrida da população, explorando a marginalização e os desafios que podem levar ao crime, mas o longa se abstém de falar sobre seu passado, que chega a ser momentaneamente citado no filme. Djalma é pai de Kaue e marido de Rosana, que apesar de não aparecerem no filme são tratados como peça importante na motivação do rapaz, como se o roubo fosse a alternativa encontrada por ele para bancar sua família, uma questão densa principalmente ao considerarmos que estamos sendo levados a ver os dois lados da moeda sem ter condições de julgar, Djalma é um criminoso e merece uma punição, mas será que a armadilha do Dr. Ferrari foi justa para ele?

O ‘antagonista’ da trama é o médico vivido por Alexandre Nero, que claramente carrega muitos traços do Comendador José Alfredo fundidos com certos ideais políticos extremistas que são colocados nas entrelinhas dos discursos do médico. Ele claramente foi moldado a fogo pelo seu passado, que é citado várias vezes durante o filme e chega até a ser melhor explanado em uma certa cena, mas isso tirou muito de sua humanidade, e isso fica claro quando vemos a frieza que ele trata Djalma ou quando ele começa com discursos controversos sobre o desmatamento da Amazônia ser fake news ou uma criança morrer em um tiroteio ser um pequeno preço a pagar na guerra da policia.

O terceiro elemento da trama, a personagem de Mariana Lima, é uma negociadora da policia que se torna necessária num dado momento da evolução do roteiro, quando toda a situação perde o controle e os espetáculos midiáticos das reportagens buscando audiência se tornam parte da crítica, seria normal ver um médico fazer um ladrão de refém? Todo o discurso da personagem de Mariana serve para nos forçar a refletir sobre essa situação, sobre os dilemas que estão sendo enfrentados. Os policiais, apesar de não serem importantes para a trama, surgem como uma ferramenta implacável ao fazer o publico questionar várias coisas, tentar entender até onde um criminoso merece ser tratado bem e até onde Djalma merecia ter sido torturado? Será que a vingança de Henrique foi justa? Será que Djalma aprendeu a lição? Um ladrão merece ser perdoado? Um carro abandonado no meio da rua realmente é algo que passa despercebido? E, principalmente, quem é o vilão e quem é a vítima?

Entregando um suspense reflexivo que revitaliza o roteiro argentino, A Jaula coloca em pauta questões sociais, morais e até (de forma subliminar) politicas, o que faz com que sejamos pegos em várias cenas tendo pena do ladrão, desejando que ele consiga se salvar e até o alçando ao cargo de anti-herói, o que faz com sejamos obrigados a refletir sobre os dois lados da moeda. Numa batalha de rico versus pobre, ou homem de bem contra ladrão de carro, sempre há vários pontos de vista a ser considerados, somos sempre forçados a tomar partido quando sabemos que não existe lado certo, e é essa ideia que é claramente representada pelo momento que a repórter pede a seus espectadores que telefonem para votar se preferem ver o médico soltar o bandido ou mata-lo. Toda a produção parece feita para forçar o publico a refletir, mesmo que parece irreal ou até forçada em certos momentos, trazendo uma sensação de ação e consequência que reflete o mundo real fora das telonas, trazendo até uma cena onde temos o corte de dentro e fora do carro para termos um contraste entre os sons e tensões.

“Os tempos mudaram, tá okay?”

 

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.

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