Crítica | Entre Facas e Segredos (Knives Out)

Nota
4

O mais divertido de lidar com o ‘whodunnit’ (o subgênero clássico do “quem matou?”) é que, com as dezenas de livros de Agatha Christie, existe um arquétipo difícil – e até desnecessário – de ser quebrado. Mais complicado ainda, na verdade, é inovar estruturalmente o subgênero e oferecer-lhe um novo; exatamente por causa disso, o diretor e roteirista Rian Johnson (mais conhecido pelo extraordinário e controverso trabalho em Star Wars VIII: Os Últimos Jedi) tratou de seguir os princípios essenciais do bom mistério, mas ressignificando tom temas e camadas.

História original de Johnson, mas abertamente inspirada nos casos investigados pelo icônico personagem Hércules Poirot, Entre Facas e Segredos parte da misteriosa morte de um escritor de livros policiais muito rico (Christopher Plummer) e cercado de parentes parasitas (Chris Evans, Don Johnson, Jamie Lee Curtis, Toni Collette, Michael Shannon e alguns outros). O motivo aparente é o suicídio, o que desperta enorme desconfiança no detetive responsável pelo caso, Benoit Blanc (Daniel Craig).

Cada momento é escrito e filmado com todo aquele prazer pelo suspense, uma alegria impossível de se descrever racionalmente e que todo leitor de Agatha Christie gosta de sentir. É uma orquestração de quebra-cabeça tão vivaz que, ao fim e ao cabo, a descoberta do culpado é bem menos relevante do que o caminho até ele.

Preciso no design de produção como é, Rian Johnson estabelece o princípio à moda antiga do mistério na própria disposição dos cenários, fechando a maior parte do filme dentro da casa e expandindo apenas quando necessário. Estilosos, mas sem sem afetação, seus enquadramentos nunca esquecem das facas em segundo plano e são dinamizados por uma montagem brilhante que, por vezes, mistura as respostas do questionário de Blanc como se todos os interrogados estivessem respondendo ao mesmo tempo – o que coloca todos os suspeitos, a princípio, em pé de igualdade.

Esse espírito de brincadeira Entre Facas e Segredos nunca larga – o que não lhe impede de lidar frontalmente com o drama proposto. Claro que, para efetivar o conflito e evitar o cartunesco, o elenco é o que há. Embora não haja um equilíbrio pleno em relação ao tempo de tela, visto que o protagonismo é voltado mais explicitamente à personagem de Ana de Armas, todos os nomes de peso tem ao menos um momento de evidência ou peculiaridade. Mais importante do que servirem como suspeitos a mais, boa parte dos coadjuvantes forma um paredão simbólico do protecionismo e da xenofobia; ainda que preserve figuras que parecem se diferenciar daquele contexto familiar (a jovem feminista, a estilista alternativa) ou os de aparência inofensiva (o menino neonazista e a velhinha caduca), o filme trata todos como parte da mesma problemática.

Parece que o diretor não quis deixar nenhum conceito essencial de fora, mas seu rigor e sarcasmo são suficientes para controlar as chances de se tornar pastiche de referências vazias. Encanta mais ainda que tudo seja construído com a leveza necessária para que quem não está familiarizado com Agatha Christie possa, talvez, descobrir um mundo extraordinário. E, para quem já conhece, tem a chance de redescobrir – da melhor maneira possível.

 

De Recife (PE), Jornalista, leonino típico, cinéfilo doutrinador.

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