Resenha | Ninfeias Negras

Nota
5

“A água clara do rio se tinge de rosa em pequenos filetes, como a efêmera cor pastel de um jato d’água no qual se limpa o pincel. […] Só que o vermelho não provém de uma paleta que um pintor houvesse lavado no rio, mas sim do crânio esmagado de Jérôme Morval. Gravemente esmagado, aliás.”

Em Giverny, a charmosa vila francesa eternizada pelas pinceladas de Claude Monet, o cenário é digno de um cartão-postal: campos floridos, uma ponte de madeira sobre as águas tranquilas e, claro, o jardim das famosas ninfeias. Mas o que Michel Bussi constrói neste romance vai além da paisagem idílica. A vila se torna o palco de um mistério engenhoso, onde arte, obsessão e destino se entrelaçam até o ponto em que já não é possível distinguir o real do ilusório. Assim começa Ninfeias Negras, com a promessa de beleza e violência caminhando lado a lado.

A trama parte do assassinato de Jérôme Morval, um médico apaixonado por arte, encontrado morto no riacho que atravessa Giverny. Ao lado do corpo, uma carta enigmática e referências à pintura mais famosa de Monet. O caso desperta a atenção de dois policiais, Laurenç Sérénac e Sylvio Bénavides, mas logo o leitor percebe que o crime é apenas a primeira camada de uma narrativa repleta de camadas. Três mulheres estão no centro desse enigma: uma menina prodígio da pintura, uma professora presa a um casamento frustrado e uma idosa solitária que tudo observa das sombras. Cada uma delas carrega segredos que, quando trazidos a tona, transformam completamente tudo o que achávamos saber sobre a história.

O grande trunfo de Bussi está na maneira como manipula os pontos de vista e, sobretudo, as expectativas, contruindo uma narrativa engenhosa, cuja estrutura se desdobra em um labirinto de múltiplas camadas temporais e emocionais. A estrutura da narrativa é uma obra de arquitetura: sólida, calculada e absolutamente surpreendente. A escrita de Bussi é envolvente, quase hipnótica, marcada por descrições que flertam com o lirismo, mas que mantêm a tensão do suspense do início ao fim. Ele nos convida a observar os acontecimentos como quem contempla um quadro impressionista — de perto, vemos manchas confusas; de longe, a imagem se revela. E quando finalmente vemos a figura completa, ela nos tira o chão.

Ninfeias Negras não é apenas um thriller. A princípio, tudo parece guiado por pistas clássicas de um romance policial: um cadáver, investigações, suspeitos e reviravoltas. Mas aos poucos, o autor revela sua verdadeira intenção — conduzir o leitor por um jogo literário onde nada é o que parece ser. A obra é uma meditação sobre o tempo, sobre a memória e sobre as múltiplas formas que a dor pode assumir. O autor entrega um humor sarcástico e crítico, o que garante um equilíbrio curioso entre o absurdo e o profundo. O amor pela arte, especialmente pelas obras de Monet, não serve apenas como pano de fundo: ele impregna a trama, guia os personagens e funciona como metáfora para os temas centrais da obra — a beleza passageira, a ilusão de permanência, a tentativa desesperada de preservar o que se ama.

Ainda assim, é preciso dizer: Ninfeias Negras não faz concessões. O conteúdo emocionalmente denso e os dilemas morais que surgem ao longo da narrativa exigem um leitor atento e disposto a desconstruir certezas. O livro também aborda o papel das mulheres em uma sociedade que tenta silenciá-las, o peso das escolhas individuais e o quanto somos moldados por circunstâncias fora do nosso controle. E, por trás do mistério policial, há uma crítica afiada à maneira como consumimos arte, história e até mesmo as pessoas. A grande virada de Ninfeias Negras não está apenas na trama em si, mas na forma como ela é contada. É um livro que manipula o olhar do leitor como um quadro manipula a luz.

Ao final, o romance entrega uma reviravolta absolutamente devastadora, que não apenas fecha com maestria o enredo, mas ressignifica tudo o que veio antes. É daquelas revelações que fazem o leitor querer voltar à primeira página para ler tudo sob uma nova luz. Ninfeias Negras é uma obra que mistura o mistério clássico com a sensibilidade de um drama psicológico e o olhar aguçado de um romance literário. Um livro que não apenas entretém — ele impressiona, intriga e emociona. Raros são os thrillers capazes de unir uma narrativa envolvente com um final genuinamente surpreendente e, ao mesmo tempo, emocionalmente devastador, Ninfeias Negras é um desses. E como toda boa obra de arte, continua reverberando muito depois de sua última página.

 

Ficha Técnica
 

Livro Único

Nome: Ninfeias Negras

Autor: Michel Bussi

Editora: Arqueiro

Skoob

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.

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