Nota
Cinderela nunca foi tão ambiciosa. Em Feitiço, segundo volume da trilogia Encantadas escrita por Sarah Pinborough e publicada no Brasil pela Única Editora, o conto de fadas é apenas a superfície de uma história muito mais ácida, sombria e instigante. O livro segue a proposta iniciada em Veneno, mas desta vez nos convida a mergulhar na psique de uma protagonista já familiar — e completamente diferente da donzela que os contos tradicionais idealizaram.
Nesta versão do clássico, Cinderela não sonha apenas com amor, mas com prestígio, luxo e uma vida que fuja do tédio e da opressão de sua realidade. O príncipe é uma meta, não um sonho romântico. A fada madrinha, uma figura com intenções ambíguas, oferece a oportunidade ideal para transformar seu destino. O resultado é um pacto perigoso que a leva ao baile, mas também a enreda em uma rede de segredos, jogos de poder e manipulação.
Pinborough constrói sua narrativa com agilidade e um certo deleite pelo subversivo. A linguagem ora se aproxima da fábula, ora escorrega propositalmente para um tom quase cínico, refletindo a hipocrisia e o egoísmo que movem muitos dos personagens. A autora não está preocupada em entregar mocinhos ou vilões, mas sim humanos — e é exatamente aí que a história ganha força. Cinderela é falha, sedutora, vulnerável e, ao mesmo tempo, manipuladora. Sua evolução (ou seria queda?) é sutil, mas constante. Há momentos em que a personagem provoca compaixão, em outros, desprezo — e isso é um mérito narrativo, não uma falha de construção.
A ambientação mantém o tom fantasioso, mas há um ar de podridão espreitando pelos cantos dos castelos e pelas máscaras dos nobres. E para quem leu o primeiro volume, há recompensas adicionais: o universo começa a se entrelaçar, pequenas aparições de personagens conhecidos reforçam a ideia de um mundo coeso, quase como se os contos estivessem mesmo acontecendo simultaneamente, em territórios vizinhos. A mitologia do reino vai se revelando aos poucos, e a autora brinca com essa intertextualidade sem que isso pese para quem preferir lê-los de forma independente.
A presença do erótico continua firme aqui. Mas em Feitiço, ele parece menos gratuito do que em Veneno — há mais intenção por trás das cenas sensuais, mais consequências e menos sedução fácil. Há também um jogo constante com a ideia do desejo feminino, que não é punido, mas sim explorado em sua complexidade. O feitiço, no fim, não está apenas nos encantos lançados por varinhas, mas na própria ilusão que cada personagem alimenta para si.
Feitiço é um livro que continua o projeto de desconstrução dos contos de fada com vigor e estilo. Sarah Pinborough sabe exatamente até onde quer levar sua narrativa: não até o felizes para sempre, mas até o ponto em que cada personagem precisa encarar as consequências de suas escolhas. O final é afiado, provocador e abre caminho com elegância para o próximo volume. É uma leitura rápida, mas não superficial. Como toda boa releitura, Feitiço oferece mais camadas quanto mais o leitor estiver disposto a questionar as histórias que achava conhecer.
Ficha Técnica |
![]() Livro 2 – Saga Encantadas Nome: Feitiço Autor: Sarah Pinborough Editora: Única |
Skoob |
Icaro Augusto

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.