Crítica | Perfect Blue

Nota
5

Mima Kirigoe é uma cantora de um trio de garotas não muito popular, de um estilo conhecido no Japão como “idols”, que recebe uma proposta para atuar em séries com papéis pequenos, na promessa de alavancar a sua carreira com papéis melhores. Mas para isso, ela precisa tomar a difícil decisão de deixar o trio CHAM! para seguir a sua nova carreira de atriz. A decisão foi bastante encorajada pelos seus assessores, e ela sairia em bons termos com suas colegas de trabalho também, mas ao anunciar sua saída no seu último show, alguns fãs não receberam bem a notícia. Um deles, inclusive, acompanhava todos os seus passos, e já havia trabalhado inclusive como segurança de um show por meio período para ficar mais perto da sua ídola, quando decide enviar uma carta de despedida com um link de um site. Mima, que nunca havia entrado na internet, fica curiosa para descobrir o que era aquilo, chegando até a comprar um computador para descobrir o que era, até que ela se depara com páginas inteiras dedicadas a relatar o que acontecia no seu dia como se fosse um diário particular dela. E é a partir desse momento que a vida da jovem atriz começa a parar de fazer sentido. Do famoso diretor Satoshi Kon, Perfect Blue é um clássico atual da animação japonesa, trazendo temas atualíssimos como a hipersexualização feminina na indústria e os efeitos das relações parassociais.

Conhecidíssimo pelas suas obras com temas mais maduros e sérios, o diretor Satoshi Kon já surpreendeu no seu filme de estreia, Perfect Blue, justamente por cutucar e criticar a mídia japonesa da época, e que não mudou até hoje, de uma forma tão inteligente e incisiva. O diretor mantém a temática de explorar melhor a psique e personalidade de suas personagens em projetos subsequentes, como em Paprika (2006), muito comparado com Perfect Blue não só pelos temas parecidos como também pela semelhança das personagens principais e dos cenários das duas obras. Além disso, também trouxe outras obras focadas em temas distintos, com temas mais emotivos na sua essência, como por exemplo quando ele questionou e desafiou os conceitos de família tradicional como em Tokyo Godfathers (2003). Trazer temas desafiadores já virou uma das características do diretor, que traz questionamentos de uma forma palatável para a sociedade japonesa, especialmente para as épocas que suas produções mais famosas foram produzidas, sendo também um reflexo da sua época em alguns momentos.

A animação aborda muito bem o tema de relações parassociais, especialmente numa época onde nem existiam redes sociais. A cultura de “idols” na Ásia movimenta muito dinheiro, especialmente dos milhares de fãs que são conquistados todos os anos a cada novo grupo que é lançado no mercado. Junto a isso existe também a cultura que os fãs têm ao lidar com os seus próprios ídolos, que normalmente é uma forma muito tóxica onde os artistas têm a necessidade de manter suas vidas reclusas ao máximo para não desapontar os fãs. Mesmo não sendo famosa, a personagem Mima acaba vivendo um pouco dessa relação tóxica entre fãs, primeiro pelo não apoio do público com sua saída do grupo CHAM!, para então a real perseguição de um fã que acompanha sua vida nos mínimos detalhes. O que é interessante da abordagem de Perfect Blue com relação a isso, é quando a Mima começa a ficar paranóica com a perseguição de seu fã, onde ela já não consegue distinguir o que é realidade e o que é inventado da sua cabeça, criando uma confusão narrativa que incrivelmente funciona de uma forma genial. A imprevisibilidade do roteiro acaba criando uma história única que é capaz de surpreender até os mais atentos e também quem acaba reassistindo, percebendo novos detalhes que se passaram despercebidos. 

Outra questão pertinente abordada no longa é a hipersexualização feminina na indústria de mídia japonesa. O Japão é um país com um problema enorme com assédio, e isso se reflete muito nas mídias, visto que mulheres em produções japonesas são sexualizadas ao extremo, seja em animações ou em produções audiovisuais no geral. Com a Mima, ao invés de mostrar apenas a relação de como é feita a sua exploração, assim como da relação dos produtores com ela, o filme tem uma sacada muito interessante de mostrar os sentimentos da personagem para com a sexualização que vem se tornando cada vez maior para conseguir mais trabalhos na indústria. Em meio aos seus delírios, Mima chega a não se reconhecer mais e a duvidar de si mesma, num momento onde ela percebe que sua “inocência” não existe mais, o que acaba sendo um comentário do diretor muito bem colocado para a época e que pode ser trazido até os dias de hoje, visto que não houve nenhum progresso com relação a essas temáticas na sociedade japonesa dos anos 90 até hoje. Em meio a isso, há cenas feitas para serem desconfortáveis que são muito bem feitas, tocando em temas de dentro de produções de televisão que são muito pertinentes com relação às condições de trabalho das mulheres.

Inovador e disruptivo, Perfect Blue consegue trazer discussões pertinentes até os dias de hoje com uma pitada maravilhosa de surrealismo. Produzida pelo diretor Satoshi Kon, conhecido por seus temas profundos, e pelo estúdio MADHOUSE que trouxe uma variedade de obras que costumam trabalhar temas complexos, o primeiro longa de animação do diretor Satoshi Kon transcende o tempo trazendo discussões que eram necessárias desde os anos 90, numa época onde a internet ainda estava começando, e que se tornam ainda mais pertinentes nos dias de hoje. O surrealismo do roteiro que nos faz duvidar de tudo a cada segundo parece a princípio uma grande confusão, mas que é tudo muito bem amarrado aos poucos, num caos genial que faz sentido, uma aula de como se fazer um roteiro surrealista e sem linearidade. Tudo isso somado a cenas extremamente desconfortáveis que nos fazem refletir sobre as questões apresentadas, desafiando nossa percepção da realidade. No fim, Perfect Blue serve como uma crítica que torna o próprio filme como um espelho incômodo da sociedade.

 

Ilustradora, Designer de Moda, Criadora de conteúdo e Drag Queen.

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