Nota
“Você não tem o poder de me aborrecer. Não é tão importante assim, menino.”
Em 1958, quando tinha 15 anos, Michael Berg morava em Neustadt, na Alemanha Ocidental, quando conheceu, por acaso, Hanna Schmitz, uma trocadora que o socorreu quando estava passando mal e vomitando na rua. Diagnosticado com escarlatina, o garoto acaba sendo tratado e se recupera, o que o leva a querer conhecer melhor a desconhecida que o ajudou. Passa então a frequentar sua casa, ler para ela livros que estuda no colégio, e acaba se envolvendo sexualmente com aquela mulher anos mais velha, até que ela recebe uma promoção e desaparece de sua vida. Anos mais tarde, em 1966, Michael está cursando Direito na Universidade de Heidelberg quando seu professor decide levar os alunos para assistir ao julgamento de várias mulheres acusadas de envolvimento na Marcha da Morte, ocasião em que centenas de prisioneiras morreram queimadas em uma igreja durante o ano de 1944. Entre as rés, Michael reencontra Hanna Schmitz.
Baseado no romance do escritor alemão Bernhard Schlink, O Leitor é uma obra controversa que obriga o espectador a refletir sobre o Holocausto sob uma nova ótica — um ponto de vista perturbadoramente envolvente. Nas mãos de Stephen Daldry, o longa se torna ainda mais sedutor, mergulhando nas nuances do passado de Michael e Hanna, especialmente na intimidade que eles constroem. Tudo é conduzido para que, ao chegarmos ao tribunal, acreditemos conhecer Hanna o suficiente para julgar sua índole — e, então, nos vejamos em conflito entre condenar a mulher nazista ou sentir compaixão pela trocadora silenciosa.
Não é à toa que o filme tenha sido indicado ao Oscar de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Fotografia, e tenha rendido a Kate Winslet o prêmio de Melhor Atriz. O Leitor também recebeu indicações ao Globo de Ouro, SAG Awards, Festival de Cannes, BAFTA, MTV Movie Awards, European Film Awards e Satellite Awards — com Winslet sendo premiada em muitos deles por sua atuação arrebatadora. Poderosamente polêmico, o filme toca em várias feridas ao mesmo tempo, obrigando o espectador a destruir tabus para enxergar a doçura do amor que nasce em 1958, arrebatando nosso emocional ao nos jogar no turbilhão moral de 1966 e, acima de tudo, nos derrubando sem piedade ao revelar migalhas do desfecho dessa história de ‘amor’, em 1988.
A obra vai expondo suas camadas aos poucos, fazendo-nos sentir o poder do amor entre um garoto adolescente e uma mulher mais velha, sem nos preparar para o que realmente está por vir: o doce romance da juventude se transforma no doloroso dilema moral de um aspirante a advogado. Os ecos do Holocausto, a culpa e as consequências do regime nazista se entrelaçam à história densa da personagem de Winslet, em que vergonha e remorso se cruzam e cobram seu preço de forma violenta. Como se não bastasse a profundidade narrativa, a fotografia é um espetáculo à parte — emoldura com delicadeza a atuação de Winslet e oferece espaço para Ralph Fiennes e David Kross, que, embora interpretem o protagonista Michael em fases distintas, não são o verdadeiro centro da produção. Ainda assim, entregam um contraponto sólido, essencial para que a jornada emocional do espectador se complete.
Uma verdadeira obra de arte do cinema, O Leitor não quer absolver ninguém, nem oferecer respostas fáceis. Seu maior feito está justamente em provocar desconforto, forçando quem assiste a navegar por entre os limites da empatia, da justiça e da memória histórica. O amor, aqui, não é redentor — é memória, é cicatriz, é um lembrete de que nem sempre a verdade dói menos do que o silêncio. É uma obra que desafia o espectador a sentir culpa junto com seus personagens, que nos convida a ler o passado como quem folheia um livro romantico maculado pela sombra do nazismo, e que jamais poderá ser lido com inocência. Dura, complexa e visualmente impecável, essa é uma história que permanece no corpo como uma febre antiga, que nunca foi totalmente curada. A obra vai além do esperado, ultrapassando as certezas que pensamos ter, testando nossas convicções e desafiando nossas percepções sobre o mundo e sobre as pessoas. É impossível sair dessa experiência sem vacilar diante de antigas verdades, sem perceber que nem tudo é preto no branco, e que nem todos os seres humanos podem ser facilmente classificados como bons ou maus.
“Se gente como você não aprender com o que aconteceu com gente como eu, então qual o propósito disso?”
Icaro Augusto

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.