Crítica | Milk: A Voz da Igualdade (Milk)

Nota
4.5

“Hoje é sexta-feira, 18 de novembro. Essa fita só deve ser ouvida caso eu seja assassinado”

Em meados de 1972, o carismático e bem-humorado Harvey Milk se mudou de Nova York para São Francisco, onde abriu, junto com seu namorado Scott Smith, a Castro Camera — uma loja de câmeras fotográficas localizada no distrito do Castro. Na época, a região ainda era marcada por forte resistência à presença da população LGBTQIA+, mas a loja logo se transformou em um ponto de encontro para a crescente comunidade gay da vizinhança, tornando-se referência na luta por direitos civis. Harvey, o primeiro homem abertamente gay a ser eleito a um cargo público na Califórnia, foi assassinado em 27 de novembro de 1978. Mas não sem antes deixar registrada a trajetória do comerciante que se tornou um símbolo do ativismo gay norte-americano — e que fez da política um palco para representar os marginalizados ao ocupar o cargo de supervisor da cidade de São Francisco, função equivalente à de um vereador no Brasil.

A busca por levar a história de Harvey Milk às telas começou em 1991, quando Oliver Stone decidiu adaptar o livro The Mayor of Castro Street, de Randy Shilts, para o cinema. A produção, inicialmente encabeçada pela Warner Bros., chegou a contratar Gus Van Sant como diretor e Robin Williams para o papel principal em julho de 1992. No entanto, por divergências criativas, Van Sant deixou o projeto em abril do ano seguinte, e o filme acabou sendo engavetado. Mais de uma década depois, em 2007, a Focus Features retomou a ideia e convidou Van Sant para comandar uma nova proposta de biografia — desta vez com roteiro de Dustin Lance Black e Sean Penn no papel principal. Assim nasceu Milk: A Voz da Igualdade. Indo muito além de retratar os onze meses de mandato do homem responsável pela aprovação de uma rigorosa lei de direitos civis para a comunidade gay em São Francisco, o filme constrói toda a trajetória de alguém que se viu obrigado a se politizar para proteger os seus — sem medo de expor seus fracassos, seus medos e os inúmeros percalços enfrentados ao longo do caminho. O resultado é uma obra potente e sensível, que recebeu oito indicações ao Oscar e venceu nas categorias de Melhor Ator e Melhor Roteiro Original.

Apesar de contar com um elenco de peso, o longa é conduzido de forma a manter Sean Penn no centro da narrativa — e o ator faz jus ao Oscar que recebeu ao entregar uma atuação excepcional. Sua interpretação honra a história real que encarna e, ao mesmo tempo, transmite uma naturalidade impressionante, como se o papel lhe fosse orgânico. Ele exala carisma e entrega a garra do ativista com paixão e verdade. Tamanha entrega permite enxergar com clareza os valores que moviam o jovem Milk em Nova York, as viradas de chave que o impulsionaram à política e os momentos decisivos que marcaram sua trajetória — das derrotas eleitorais até sua vitória histórica. Já Emile Hirsch (Cleve Jones) e James Franco (Scott Smith), mesmo com menos tempo de tela, conseguem imprimir presença ao longo da narrativa, ajudando a compor a complexidade emocional e política do entorno de Milk. A construção das relações entre eles deixa evidente como e por que esses nomes se tornaram figuras importantes dentro da jornada do ativismo.

Com o decorrer da trama, a pauta da Proposta 6 — informalmente conhecida como Iniciativa Briggs — ganha maior espaço na tela. Embora o principal antagonista político de Milk seja o senador John Briggs (Denis O’Hare), é a presença de Josh Brolin como Dan White que realmente pesa nessa fase da narrativa. Outro supervisor de São Francisco, White captura nossa atenção desde sua primeira aparição, exalando um incômodo que funciona quase como um presságio do papel que ocupará na história: o homem responsável pelos assassinatos de Harvey Milk e do prefeito George Moscone (Victor Garber). Sua trajetória não é retratada de forma superficial, mas sua figura se impõe como um obstáculo obscuramente intransponível na carreira de Milk — um potencial aliado que jamais se rende ao seu carisma. Conservador, de propostas controversas, Dan White transita com facilidade ao papel de “vilão”, e mesmo assim o impacto do desfecho de Milk não é suavizado: ao contrário, ele é dolorosamente exaltado.

Milk: A Voz da Igualdade é um filme obrigatório para qualquer espectador. Mais do que uma cinebiografia, trata-se de uma poderosa ode à luta por igualdade, inclusão e direitos LGBTQIA+, conduzida com um olhar sensível e progressista que inspira e emociona. A produção também acerta ao dar espaço a figuras reais do ativismo como Dick Pabich, Jim Rivaldo, Anne Kronenberg e Daniel Nicoletta — todos representados na trama e fundamentais para o avanço das pautas que Milk defendeu com tanta coragem. Com inteligência narrativa, o longa sabe exatamente quando romper a ficção e recorrer a imagens reais, criando um diálogo poderoso entre a representação e a realidade. A sequência final, que transita das atuações para registros fotográficos das pessoas retratadas, é especialmente impactante: um lembrete comovente de que, por trás de cada nome, existiram vidas inteiras dedicadas à transformação do mundo.

Histórias como a de Harvey Milk precisam ser constantemente contadas, para que as próximas gerações compreendam tudo que já foi conquistado e encontrem força para lutar por mais avanços. Ainda que seja angustiante assistir a filmes que retratam vidas brilhantes interrompidas por mesquinharias, é gratificante reconhecer os feitos dessas grandes pessoas — e necessário acompanhar o fim de alguém que poderia ter cooperado tanto para a conquista de novos direitos, enquanto os olhos se enchem de lágrimas e o peito de pesar. Para que nunca nos esqueçamos: precisamos de mais Harvey Milks no mundo, sempre calando a boca dos opressores.

“Meu nome é Harvey Milk, e eu vim aqui para recrutar vocês”

 

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.

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