Nota
Muito antes de ser o Homem com H, o jovem Ney Matogrosso (Jesuíta Barbosa) era uma criança alegre, apaixonada pela arte e pela natureza, mas que viveu reprimido pelo seu pai autoritário e militar. Com uma vida simples e humilde, Ney precisou seguir o impensável para um jovem lido como gay daquela época para se livrar do seu pai, Antônio Matogrosso (Rômulo Braga), entrar no exército. Após conseguir sua independência, assim que começava a jornada que levaria o menino humilde a se tornar um dos artistas mais influentes de sua geração, inspirando jovens LGBTs de várias gerações. Homem com H é sobretudo uma homenagem a vida e obra de Ney Matogrosso, passando por todos os momentos de sua vida, desde a infância, as dificuldades para conseguir se manter na classe artística, seus conflitos com a censura da ditadura brasileira, para enfim sua carreira ilustre, e claro aos seus amores e tudo isso sem deixar de tocar em pontos mais polêmicos de sua vida com a maior sensibilidade e poesia possível.
Dirigido pelo diretor Esmir Filho, Homem com H é o terceiro longa do diretor, que tem trabalhos desde o início dos anos 2000, sendo o mais famoso, o seu curta Tapa na Pantera de 2006, que viralizou muito na internet anos depois de seu lançamento. Com a dura tarefa de trazer mais uma biografia para as telonas, Esmir Filho consegue essa proeza em primeiro lugar pelo seu jeito bem característico de filmagem, que se manteve constante, porém com claras melhorias desde seus últimos dois longas, após mais projetos com um maior orçamento. A fotografia de Esmir é requintada e muito bem pensada, trabalhando sempre com jogos de luz que assemelha o ambiente dos palcos, mesmo em contextos onde os personagens estão fora dos palcos, muito como o diretor Damien Chazelle costuma trabalhar, porém Esmir se utiliza dessa técnica quase teatral de forma mais poética, se aproveitando de forma inteligente dos enquadramentos para trazer sentimentos a tona, e para suavizar também passagens mais sensíveis de forma mais branda.
Outro ponto altíssimo sem dúvida é a direção de arte, que mais uma vez quem assina é o talentosíssimo Thales Junqueira, responsável pela direção de arte e de produção de filmes como Aquarius (2016), Bacurau (2019) e Baby (2024), e em Homem com H o trabalho se eleva. Não só os figurinos que são impecáveis, fiéis aos originais, mas também os cenários de época que são impressionantes pelo cuidado estético pensado para cada cena. Contando com a atuação do talentosíssimo Jesuíta Barbosa, o longa traz performances sublimes, principalmente do papel de Ney Matogrosso. Por contar com o apoio do próprio Ney durante toda a produção, Jesuíta se mostra confortável com o personagem no resultado final, abraçando o papel sem deixar de mostrar suas próprias características de atuação, como se ele unisse um Ney Matogrosso com ele próprio, fazendo essa mescla entre as duas personas que resulta em uma atuação nada caricata, que seria o direcionamento mais fácil, mas ainda assim arriscado por se tratar de uma figura muito imitada e de fácil reconhecimento nacional.
Apesar de Jesuíta roubar a cena, o filme também conta com ótimas atuações, como a de Rômulo Braga e da atriz pernambucana Hermila Guedes, que interpretam os pais do Ney, tendo arcos muito tocantes e emotivos. Mas os outros destaques são realmente dos pares românticos da trama, Jullio Reis interpreta o cantor Cazuza de uma forma impecável, nada caricato e mesmo em momentos delicados ele não perde a essência do personagem. Outro destaque é de Bruno Montaleone como Marco de Maria, um dos namorados mais duradouros da juventude de Ney, que mostra sua evolução como ator após diversos trabalhos em filmes mais infanto-juvenis, mesmo sem grandes explosões, Montaleone consegue entregar uma atuação consistente e sólida, mas em muitos momentos é sim engolido pela performance de Jesuíta e até de Jullio Reis.
O enredo de Homem com H tem como pilar principal a sensualidade, que é muito bem construída e super necessária para a trama. O sexo para o filme se mostra como uma função narrativa interessantíssima, desde a juventude de Ney, com construções de tensão entre personagens cheias de emoção e muito bem feitas que não parecem forçadas. A mescla também de cenas sexuais com a trilha sonora do repertório de Ney Matogrosso casam muito bem, com sequências meticulosamente coreografadas, criando imagens verdadeiramente poéticas. Por ser uma figura disruptiva, que questionava muito a sociedade com relação a suas hipocrisias e usava de sua sensualidade como um instrumento não de choque mas sim de provocação, o longa também chega em um momento muito importante de questionarmos para onde estamos indo enquanto sociedade, já que como Ney foi uma figura importantíssima inclusive para o processo democrático como um desafiador da censura, fica também o questionamento se não precisamos de mais outros “Neys” para não retrocedermos.
Homem com H traz a história de Ney Matogrosso cheia de sensualidade, mas sem deixar de lado a sensibilidade com tópicos sensíveis. O longa que nos faz não querer sair da sala do cinema, consegue entregar excelência em tudo que se propõe, mesmo com o enredo um pouco apressado no início, podendo ter meia hora a mais para contextualizar melhor alguns pontos menores, mas mesmo assim isso não tira a grandiosidade e importância desse filme. Jesuíta Barbosa, que já era grandíssimo no cinema independente brasileiro, se mostra um ator ainda mais maduro e completo com sua performance, sem caricatices desnecessárias, e ainda se mantendo fiel a si mesmo.
Além disso, a direção e produção de arte se mostra deslumbrante, resultado de um time muito bem relacionado, trazendo como resultado final um filme lindo até nos mínimos detalhes, tudo graças ao trabalho minucioso do diretor de arte Thales Junqueira com o diretor Esmir Filho. Esmir Filho inclusive, apesar de não ter muitos trabalhos como diretor de longas, se mostra consistente com relação a qualidade, elevando o nível com relação a obras anteriores, e explorando muito bem as técnicas de filmagem, composição e inclusive enredo. Homem com H é uma ótima pedida para aproveitar esse feriado para quem gosta de um filme confortável, mas inteligente o suficiente para nos fazer pensar nele, mesmo após sair da sala de cinema.