Nota
Quanto um coração pode mudar uma pessoa? Já virou clichê nos filmes vermos transplantes de coração provocando mudanças profundas nos transplantados — herdando amores dos doadores, fragmentos de personalidade ou até vocações. Mas o que aconteceria se um hétero cafajeste recebesse o coração de uma cabeleireira travesti? Sandro (André Bankoff) é um típico Don Juan metido a garanhão, habituado a uma vida de luxo e movido por preconceitos escancarados. Já Isadora (Aramis Trindade) é uma travesti que, após anos fazendo shows na noite, leva agora uma vida simples enquanto enfrenta o preconceito diário com força e dignidade.
Na virada do ano, os caminhos dos dois se cruzam de forma trágica e determinante: Sandro sofre um ataque cardíaco; Isa, vítima de um atropelamento fatal, tem seu coração transplantado para o corpo do homem que a desprezaria em vida — um gesto involuntário que transformará completamente o modo de pensar, sentir e existir desse homem.
A comédia dramática, dirigida e corroteirizada por Glauber Filho, é inspirada nas peças teatrais Acredite, um Espírito Baixou em Mim e O Coração Safado, ambas escritas por Ronaldo Ciambroni. Na prática, temos a trama central de O Coração Safado — em que uma travesti recebe o coração de um mulherengo e passa a ser transformada pela presença dele — invertida em sua lógica. Já retalhos de Acredite, um Espírito Baixou em Mim, que narra a história de um fantasma gay que possui o corpo de um machista, são incorporados de forma criativa. O resultado não se limita a adaptar nenhuma das duas peças integralmente: cria-se uma nova história com identidade própria e um desfecho inédito.
Apesar dos esforços do diretor cearense, Bate Coração foi recebido de forma negativa pela crítica e também fracassou comercialmente, levando apenas cerca de seis mil espectadores aos cinemas — talvez um reflexo direto de como a premissa, que poderia transformar o contraste entre heterossexualidade e homossexualidade em uma comédia reflexiva, acabou reduzida a um roteiro raso que transforma a homofobia em piada e reforça estereótipos mais ofensivos do que engraçados. Com uma proposta que poderia facilmente equilibrar humor e reflexão — abordando tanto o preconceito quanto a importância da doação de órgãos —, o longa tropeça feio justamente na hora de entregar a maturidade que o tema exige.
Aramis Trindade até tenta dar empatia à personagem Isadora, imprimindo leveza e doçura na tentativa de homenagear a comunidade queer. No entanto, o roteiro transforma Isa, e praticamente todas as outras personagens travestis, em figuras caricatas, forçadas e excessivamente performáticas, tornando o núcleo queer desconfortável em diversos momentos. O arco de Sandro, que deveria apresentar uma verdadeira desconstrução moral, também escorrega: sua transformação inicial se expressa mais por maneirismos afeminados e insinuações homossexuais do que por um real amadurecimento ético ou empático. Nem mesmo o núcleo ao redor de André Bankoff é salvo: seu publicitário vive numa bolha de masculinidade tóxica e misoginia que pouco se aprofunda, restando espaço apenas para Igor (Paulo Verlings), o amigo bobalhão, e para a Dra. Cláudia (Heloísa Jorge), médica responsável pelo transplante e interesse amoroso do protagonista.
Bate Coração parte de uma premissa promissora e ousada, mas tropeça ao transformar essa ideia em um roteiro falho e, por vezes, ofensivo. O longa tenta combinar humor, crítica social e reflexão sobre identidade, empatia e doação de órgãos, mas falha em sua execução, especialmente ao tratar com superficialidade temas que exigem sensibilidade. Apesar disso, acerta ao construir um universo onde nenhum personagem está ali por acaso. Cada figura que entra em cena — mesmo as mais breves — tem alguma função narrativa clara, seja para revelar uma nuance do enredo, servir de contraste moral ou reforçar a conexão entre os núcleos. É essa estrutura enxuta e interligada que garante ao filme certa coesão, mesmo quando vacila muito entre o respeitoso e o estereotípico.
“Esse homem, esse gay, ele salvou a sua vida!”
Icaro Augusto

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.