Crítica | A Vida no Skate com Leo Baker (Stay on Board: The Leo Baker Story)

Nota
4

“Lacey Baker era uma pessoa que foi montada pelo mundo ao meu redor.”

Lacey Baker foi uma lenda do skate, uma das melhores skatistas femininas de sua geração e a primeira a assinar um modelo de tênis pela Nike SB. Mas como Leo Baker poderia nascer à sombra de uma figura tão celebrada, quando essa figura era elu mesmo antes de sua transição? É essa a tensão que pulsa em A Vida no Skate com Leo Baker, documentário lançado pela Netflix em 2022, dois anos após Leo se assumir publicamente como homem trans. Dirigido por Nicola Marsh e Giovanni Reda, o filme ultrapassa os clichês de trajetórias esportivas e se debruça sobre um conflito muito mais íntimo: o de alguém que precisa escolher entre o prestígio de uma carreira consolidada no circuito feminino ou o direito inegociável de viver sua verdade. E é aí que o skate vira pano de fundo para algo ainda mais radical — o retrato de uma identidade reprimida que decide se erguer, mesmo quando o mundo inteiro exige que ela continue escondida sob os refletores da fama.

O documentário acompanha Leo entre treinos, memórias de infância, desabafos íntimos e decisões que transformaram sua trajetória. Mais do que um registro de feitos esportivos, o longa mergulha na cisão interna de alguém que, por anos, performou um papel exigido por patrocinadores, mídia e federações. Como Leo diz em um dos momentos mais marcantes, chegou um ponto em sua carreira em que elu já era Leo Baker para os amigos e familiares, mas ainda era Lacey Baker nas competições — e seu olhar, ao lembrar disso, carrega a dor silenciosa de quem precisa representar um nome que já não lhe pertence. É nesse abismo entre o privado e o público que o filme encontra sua força, mostrando que viver em plenitude, para uma pessoa trans, muitas vezes exige abrir mão de tudo, inclusive da glória que tantos almejam. A força do documentário está na crueza com que apresenta o dilema interno de Leo. Imagens de arquivo, depoimentos de amigos e cenas de treino se intercalam para mostrar a travessia de alguém que desde cedo foi projetado como prodígio, mas que crescia em conflito constante com o próprio corpo.

A direção de Nicola Marsh e Giovanni Reda opta por uma abordagem próxima, quase íntima, que valoriza os silêncios e os detalhes do corpo: mãos inquietas, olhares desviados, lágrimas contidas. A câmera não busca o sensacionalismo, mas sim a humanidade. E há uma escolha narrativa potente — o documentário faz questão de mostrar Leo sendo constantemente chamado de “ela” e tratado no feminino em eventos, premiações e entrevistas antigas, como um lembrete cruel da dissonância entre identidade e reconhecimento público. A repetição desses momentos, em vez de ser suavizada, é mantida com propósito, e nos convida a observar, quase que involuntariamente, a dor silenciosa que Leo provavelmente sentia em cada uma dessas ocasiões. Essa exposição, longe de ser gratuita, evidencia o quanto o mundo do esporte pode ser excludente e violento com quem não se encaixa nas normas de gênero esperadas.

Tecnicamente, o documentário aposta em uma estética híbrida entre o registro documental e o ensaio íntimo. A fotografia é predominantemente naturalista, captando o cotidiano de Leo com luz crua e movimentos fluidos de câmera que acompanham tanto as manobras quanto os silêncios. A trilha sonora alterna entre batidas urbanas e sons ambientes, reforçando o contraste entre a agitação do mundo competitivo e os momentos de introspecção. A montagem é um dos pontos altos, costurando memórias, entrevistas e imagens recentes com ritmo e coerência. Temos depoimentos de grandes nomes como Tony Hawk, Beatrice Domond e Neen Williams, além das amigas Alexis Sablone e Jenn Soto, e da esposa, Melissa Bueno-Woerner. Ainda assim, o longa hesita em registrar plenamente o momento de verdadeira libertação de Leo: quando ele enfim assume seu nome profissionalmente — um gesto simbólico e definitivo que merecia mais protagonismo na narrativa.

A história de Leo se entrelaça com o ano em que o skate foi oficialmente incluído como esporte olímpico, o que faz com que suas decisões impactem diretamente sua possibilidade de integrar a seleção olímpica dos EUA. A Vida no Skate com Leo Baker se transforma, assim, em uma metáfora poderosa sobre autenticidade: a difícil escolha entre manter-se no pedestal construído para Lacey ou arriscar perder tudo para, enfim, viver em paz como Leo. Essa tensão revela muito sobre como o sistema esportivo — mesmo em tempos de discurso inclusivo — ainda falha em acolher identidades dissidentes. O documentário não idealiza um “herói trans”, mas apresenta um ser humano em busca de integridade. É uma narrativa honesta e emocionalmente acessível, que nos mostra a frustração de um atleta que não se encaixa na vitrine olímpica e que, em vez de ceder à indústria do entretenimento, escolhe resistir. Não é apenas a trajetória de um skatista renomado, mas de alguém que precisou abrir mão de tudo que o mundo dizia ser valioso para conquistar o que havia de mais essencial: a liberdade de ser quem é. Uma obra necessária, tocante e urgente.

“Chegou num ponto que parecia que eu tinha uma vida dupla. Eu sei em que espaços eu vou ser Lacey e quando posso ser eu.”

 

Sonhador nato desde pequeno, Designer Gráfico por formação e sempre empenhado em salvar o reino de Hyrule. Produtor de Eventos e CEO da Host Geek, vem lutando ano após ano para trazer a sua terra toda a experiência geek que ela merece.

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