Análise | Clair Obscur: Expedition 33

Nota
5

Nesse ano repleto de controvérsias e críticas na indústria dos jogos, Clair Obscur: Expedition 33 já deu o que falar. Esse jogo, com claras inspirações em clássicos como Super Mario RPG, Persona e até mesmo uma trilha sonora que lembra NieR: Automata, mas com uma identidade própria inconfundível, é o nosso jogo da vez pra analisar.

COMBATE HÍBRIDO

O ponto mais forte do jogo, até mais que o próprio enredo, é o seu sistema de gameplay. Afinal, é o principal fator que te faz escolher um jogo. O sistema de ações em tempo preciso, que podemos encontrar em jogos como Super Mario RPG, que basicamente funciona com o jogador pressionando sequência de botões durante os turnos, foi praticamente reinventado aqui. Dessa vez, além do sistema tradicional do que chamamos de Quick Time Events, temos a adição de uma mecânica de aparadas, esquivas, pulos e até mesmo uma espécie de aparada especial, que só funciona contra ataques pesados. A comparação é um pouco desconexa, devido a diferença entre os gêneros, mas é necessário uma precisão a nível de Sekiro pra tirar total vantagem desse sistema de aparadas. E a coisa fica mais insana em batalhas de chefes, onde, além de decorar o moveset do inimigo, temos que esquivar de uma sequência de até 8 ataques em alguns casos.

Mas então, imagine um sistema que mistura a interface e alguns trejeitos de Persona, a precisão digna de um Soulslike e a interatividade de um Super Mario RPG? Assim, nasceu Clair Obscur, da Sandfall Interactive. Aparar não apenas nega o dano, mas gera AP, que acumulamos pra liberar habilidades especiais de cada personagem durante o combate. E cada personagem, dentre todos os 6 jogáveis na história, tem um sistema único. Tem, por exemplo , Maelle, que trabalha com um sistema de três posturas de combate, que alternam e ativam de acordo com qual habilidade você escolhe usar, e desativam em caso de ataques básicos. As posturas consistem na ofensiva, que dá a possibilidade aumentar o dano causado e recebido em 50%; a defensiva, que diminui o dano causado e recebido também em 50%; e a virtuosa, que mantém a defesa base mas causa 200% de dano nos oponentes. E, dependendo da sequência, conseguimos manter posturas durante toda a partida.

Lune funciona como a maga do grupo, onde seu sistema consiste em acumular manchas elementais de suas habilidades, que podem ser gastas posteriomente, gerando bônus como aumentar a eficiência da cura, dano causado e até mesmo turnos extras de ação, dependendo de como usamos as manchas durante o combate. Elas variam entre elétricas, terrestres, glaciais, flamejantes e radiantes, que funciona como uma coringa. Temos Sciel, uma cartomante que funciona como uma personagem de dano massivo. O sistema de combate da Sciel consiste em dois grupos de cartas que acumulam pontos sempre que utilizadas, as lunares e solares. Cartas solares normalmente acumulam cargas de predição no inimigo, enquanto as lunares normalmente consomem estas cargas acumuladas pra gerar bônus na batalha como dano aumentado, cura e até acúmulo extra de AP. Assim que acumulamos pelo menos uma carga de cada tipo de carta, entramos no modo crepuscular, que aumenta o dano e o crítico por uma quantidade de turnos proporcional ao nosso acúmulo.

Pode parecer muita coisa, mas acredite, o jogo entrega tudo isso devagar e de maneira que parece orgânica, pois as habilidades de cada personagem conversam entre si e dão a liberdade pra testar diversas combinações, já que cada personagem também possui sua própria árvore de habilidades, que podem mudar consideravelmente como vai funcionar em seu grupo. Essa parte é a que mais lembra Persona. Temos também o que chamamos de Pictos, que são itens equipáveis que, com o tempo, libera uma característica especial pra ser utilizada por todos os personagens, diversificando ainda mais a itemização. Mas antes de avançar o tópico, é importante dizer que há pessoas dizendo que esse sistema de batalha precisa ser o novo padrão, desvalorizando o que o gênero de batalhas por turno vem fazendo há 20 anos. Não surpreende esse tipo de reação, mas pode ser muito errado dizer algo assim.

Não entendam mal, o sistema de batalha é ótimo, mas também é bom que outros jogos brilhem com sua própria abordagem do combate por turnos. Não precisa que o próximo Persona, SMT ou Octopath Traveler tenham a mecânica de aparar e esquivar. Esses jogos brilham à sua maneira, tal como Clair Obscur. Em uma indústria onde os jogos estão se tornando menos diversos (especialmente no segmento AAA), a última coisa que queremos em JRPGs (que é um gênero com mais diversidade do que as pessoas imaginam) é copiar uns aos outros e deixar de ser únicos.

O CLIMA DA BELLÉ ÉPOQUE

A França da Belle Époque ganha vida em um mundo de temática fantástica com cenários como a Torre Eiffel fragmentada, cidades flutuantes e florestas cristalinas. A direção de arte, que constantemente te faz se imaginar dentro de uma pintura surrealista, é extremamente cativante. Todos os cenários são emblemáticos e diversos, o que dá sempre uma expectativa pra saber qual vai ser o próximo lugar que a gente vai acabar visitando. O jogo impressiona em todo momento, seja com cenários mais rebuscados ou destruídos. O jogo não se destaca apenas no combate, mas também na apresentação. E falando em apresentação, felizmente, Clair Obscur não ficou só na promessa e tem qualidade de sobra pra oferecer excelência em cada detalhe.

Pra quem é fã, ou já ouviu a trilha sonora de NieR: Automata, Claie Obscur logo vai te fazer perceber a similaridade entre elas. NieR: Automata, apesar de não ter uma trilha sonora exatamente em francês, teve seu dialeto inspirado na língua francesa, criando um dialeto próprio pra sua composição com o toque de Je ne sais quoi. E Clair Obscur, recebendo das próprias raízes da sua desenvolvedora francesa, cresce forte nessa identidade. É incrível como a música encaixa milimetricamente nos momentos que a história propõe, não só em cenas melancólicas, mas também nos momentos de ação. E como todo jogo também precisa de um enredo, Clair Obscur não poupa espaços e se mostra primoroso.

Essa obra usa o luto pra nos ensinar a viver. Em um mundo onde a idade da sua morte é pintada anualmente e o fim tem data marcada por uma entidade divina, a 33ª expedição é apenas mais uma missão suicida dos que ainda tem esperança de salvar a humanidade. A narrativa é construída de forma a provocar reflexões sobre o valor da vida e o papel do indivíduo diante de forças incontroláveis. É uma história sobre resistência, do quanto os habitantes daquele universo são capazes de sobreviver enquanto já estão condenados desde o nascimento, e devo dizer que foi uma das coisas mais originais que já vi em RPGs, digna até mesmo de uma boa adaptação cinematográfica. Devido ao escopo e natureza do jogo, a história é bem linear, o que acabou se tornando algo positivo.

Menos às vezes é mais. O ritmo de muitos jogos parece desorganizado, com seções que parecem puro preenchimento e se estendem muito além do ponto de serem bem-vindas. Clair Obscur, sendo um jogo mais focado, te faz você apreciar ainda mais toda a experiência, já que nenhum segmento se arrasta por muito tempo. Um problema que afeta muitos JRPGs — mesmo aqueles muito bons ( Como o recente remake do Final Fantasy 7). É bastante comum momentos em que você é forçado a jogar de duas a três horas de missões aleatórias que não têm nada a ver com a história, e dá para perceber que foi 100% projetado para desperdiçar seu tempo e inflar a gameplay até a próxima grande missão da “história”. O que não me agrada, e fica até desconexo com a trama. E isso é algo que não acontece neste jogo, o que também não o impede de criar momentos cômicos, que por sua vez fluem bem com a narrativa, estando atrelado aos personagens.
E falando em personagens, principalmente se tratando de uma inspiração em JRPGs, Clair Obscur faz algo brilhante.

PERSONAGENS E SUAS MOTIVAÇÕES

O desenvolvimento dos personagens é aprofundado através de diálogos, missões secundárias e interações que revelam suas histórias pessoais e motivações. Dificilmente vemos jogo onde os diálogos realmente parecem genuínos, diferente do absurdismo padrão de alguns RPGs que ignoram completamente o potencial do seu personagem enquanto humano e partem numa jornada pra derrotar um Deus. Os personagens são mais que arquétipos heróicos, são humanos marcados por luto e esperança.

Por exemplo, em um momento, Gustave questiona Lune sobre o objetivo de parar a artífice se eles têm apenas uma pistola e fogos de artifício, se referindo as magias da Lune, a sua disposição. Deixa claro que os personagens estão cientes de suas capacidades, não é uma jornada épica e além da razão. Isso pega de forma extremamente positiva. Uma prova de que histórias maduras, combates inventivos e direção focada têm espaço numa indústria obcecada por números. É o tipo de jogo que te faz levantar do sofá surpreso em momentos que menos espera. Com tudo isso dito, Clair Obscur: Expedition 33 é um jogo recomendado até para pessoas não familiarizadas com o gênero de RPG de turnos. Clair Obscur com certeza vale a experiência e é digno de marcar a indústria dos jogos.

Apaixonado por indies, entusiasta de RPG's, assíduo neste universo desde os anos 90 e amante da temática retrô. Professor, Advogado, e de tudo um pouco, me arriscando como redator sobre videogames com foco em análises críticas e tendências da indústria.

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