Nota
Há artistas que transcendem o palco para construir mitologias pessoais em torno de si mesmos. Alguns o fazem com habilidade, transformando dor e vulnerabilidade em arte sincera. Outros, no entanto, confundem autoconhecimento com autoindulgência — e acreditam que, por serem fascinantes para si mesmos, o público também os achará irresistíveis. Quando essa aposta se transforma em obra audiovisual, o risco é alto. E nem sempre o resultado faz jus à ambição.
Hurry Up Tomorrow: Além dos Holofotes é uma tentativa de transcendência artística que se desmancha antes mesmo de encontrar o próprio tom. O especial, estrelado e coescrito por Abel Tesfaye, criando a dualidade entre Abel e sua persona como The Weeknd, busca fundir música, metalinguagem e drama psicológico para retratar o peso da fama, o desgaste emocional da indústria musical e o colapso de um artista diante do próprio ego. Mas o que poderia ser uma obra provocadora acaba se tornando um retrato esticado e egóico de um homem que insiste em contar a mesma história de sofrimento — só que do seu jeito, com ele sempre no centro e como vítima.
A premissa até promete: Abel interpreta uma versão fictícia de si mesmo, um cantor à beira do colapso, exausto de shows, emocionalmente abalado por uma ex-namorada e cercado de oportunistas. Em meio ao caos, ele cruza o caminho de Anima (Jenna Ortega), uma jovem envolta em mistério e dor, cujas motivações só serão parcialmente reveladas — e apenas na medida em que servem para reforçar o drama de Abel. É uma estrutura que sugere camadas, simbolismos, conexões emocionais. Mas tudo isso se esvanece rapidamente na execução, que é dispersa, repetitiva e excessivamente autocentrada.
Tesfaye, como cantor e performer, continua entregando vocais impecáveis e presença de palco inegável — e talvez esse seja o ponto mais sólido do filme. As sequências musicais são visualmente impactantes e a trilha sonora, centrada no álbum homônimo, carrega intensidade. No entanto, mesmo essas cenas, que deveriam ser momentos de respiro ou conexão, acabam esvaziadas pelo uso excessivo e pelo modo como interrompem qualquer tentativa de construir uma linha narrativa coerente. Há um desequilíbrio entre forma e conteúdo que compromete a experiência: visualmente interessante, mas emocionalmente apático.
Como ator, Abel não sustenta o papel que escreveu para si. Há momentos em que o texto exige dele uma entrega emocional mais crua, e é aí que sua limitação se torna evidente. Mesmo interpretando a si mesmo — ou uma versão mitificada de si —, sua performance é monótona, rígida, pouco convincente. Falta naturalidade, falta profundidade, falta a disposição de se despir do controle. Ele parece preocupado demais em se proteger, em manter a imagem intacta, quando o filme exigia exatamente o contrário. Não basta se mostrar frágil se tudo soa ensaiado.
O roteiro, assinado por Tesfaye, Reza Fahim e Trey Edward Shults, é igualmente problemático. Aborda temas relevantes — saúde mental, vício, isolamento na fama — mas sempre de forma superficial. As ideias são lançadas, mas nunca desenvolvidas. A sensação é de que a história está sempre prestes a começar, mas nunca sai do lugar. O relacionamento com Anima, que poderia trazer contraponto e complexidade, é tratado como um devaneio mal escrito. Jenna Ortega, apesar da dedicação, pouco pode fazer com um papel tão mal delineado. Sua personagem existe apenas para refletir o que Abel quer enxergar — e isso é pouco para uma atriz de seu calibre, ainda mais sendo ela também produtora da obra.
Barry Keoghan, como o empresário Lee, tenta dar alguma tridimensionalidade ao seu papel, mas também sofre com a limitação do texto. Seu personagem é rascunhado em traços grossos — manipulador, ambicioso, descolado de qualquer empatia — e, assim como os demais, parece girar em torno do protagonista sem jamais ter vida própria. O universo criado em Hurry Up Tomorrow é povoado por personagens-satélites, cuja única função é girar em torno do sol que é Abel Tesfaye. Esse desequilíbrio prejudica qualquer possibilidade de mergulho emocional genuíno.
Mais do que um filme, Hurry Up Tomorrow se comporta como uma longa defesa pública de Abel diante das críticas que vem acumulando, especialmente após o fracasso da série The Idol. Mas onde poderia haver autocrítica, há apenas um reforço dos vícios anteriores: centralidade exacerbada, ausência de perspectiva externa e uma obsessão com sua própria narrativa de dor e redenção. Em um dos diálogos mais desconcertantes, a personagem de Jenna Ortega para tudo para explicar o real significado das letras do cantor — uma tentativa tão explícita de autovalidação que beira a paródia. É como se o filme quisesse nos convencer a todo custo de que há profundidade onde só há vaidade.
Ao final, Hurry Up Tomorrow não esclarece, não emociona, não envolve. É uma obra feita sob medida para alimentar o mito do artista torturado, mas sem oferecer a vulnerabilidade ou a honestidade que dariam sentido a esse retrato. As melhores partes do filme — as canções, os momentos de palco — poderiam existir isoladamente, em um show visual ou clipes bem editados. Como longa-metragem, a obra falha em se justificar. A tentativa de elevar um álbum que passou despercebido acaba por enterrá-lo ainda mais. E, pior: afunda junto a imagem de Abel como um artista capaz de se reinventar fora da música.
Victor Freitas

Pernambucano, jogador de RPG, pesquisador nas áreas de gênero, diversidade e bioética, comentarista no X, fã incontestável de Junji Ito e Naoki Urasawa. Ah, também sou advogado e me arrisco como crítico nas horas vagas.